21 de abr. de 2010

11:11

O olhar arisco determina diariamente a demanda dos jornais que ficam ali bem no seu posto.
Uma nova edição, uma foto diferente na capa e sempre as mesmas notícias. Por isso, a diversão do olho cada vez mais duro de C. é com relação a quantidade subtraída; ou mais veladamente, com os tipos cansados que levam para suas mesas de escritório o periódico econômico menos lido da cidade.

F. acorda pontualmente antes que o despertador furiosamente rompa o último abraço com um tipo de sonho bom. Sabe o que esperar dessa próxima semana: abolir massas de papéis, aproveitar o arquivo de imagens, esconder aquele volume de notas frias em cima da mesa, atrasar propositadamente o aluguel em nome de um vestido. Idéias desse ano infinito em que reparou cumprir semana passada, trinta e cinco anos tabagistas na mesma sala 305 em companhia do Sr. J e da gentilíssima Sra. D. O pensamento insistiu em mais algumas idéias dessa validade até reparar na cor estranha de sua urina descendo lentamente entre as pernas.

C. aguarda ansioso a hora do almoço. Os rostos de uma revista de cosméticos sustenta o armário onde fica um monitor que lhe entrega imagens da câmera postada estrategicamente que tudo vê, desde a calçada da portaria, a uma boa parte do movimento na rua. A massa vem descendo a ladeira se aquecendo no sol do meio dia e alguns funcionários da limpeza saem pra tirar a sesta no gramado. Nessas horas sente o olhar prisioneiro, voluntário da tremenda falta de opção. E o estômago é o primeiro a denunciar a presença de ócio inalterável na forma dos ponteiros lentos do relógio de ponto. Alguns executivos também acabam de sair pro almoço. Por isso, C. abre portas. Por isso, sente-se menos que todos os tantos outros iguais; têm o mesmo efeito da porta, de qualquer objeto que não se encara com devida importância.

F. está com fome. Não aguenta mais o volume da mesma papelada infinita em sua mesa. Não dá a menor pelota pra chamada do jornal que acaba de pegar na portaria. Seu estômago é o primeiro a denunciar o nível de stress alcançado nesses anos seguidos de trabalho, refém das enormes contas que a mantém no status que tanto buscou quando jovem. Quando houver coragem de cobrar suas merecidas férias para H., vai cumprir sua vingança pessoal na casa da praia, sentada próxima a janela seguindo todo o mundo vísivel com seus olhos de auréolas enegrecidas.

F. segue com fome. E o jornal agrega suas notícias com o suor abundante de suas mãos.

6 de fev. de 2010

Dia de pagamento

Tinha pouco mais que alguns centavos na carteira quando entregou-a
ao mocinho mais alto. O sangue escorria abundante da narina
esquerda. Enquanto era socado por mais alguns minutos, pensava em
outras coisas já envelhecidas. Chamava esse devaneio de Alt e Tab.
As pancadas comendo-lhe a face e n'outro lugar absolutamente
seu, lembrava-se do gosto gelado de uma Coca-Cola que não finalizara
na noite anterior. Provavelmente o irmão tomaria toda a bebida pela
manhã. Aquele seu jeito esfomeado denunciava essas atitudes sem
maldade, mas que por um curto minuto desejava o próprio irmão sendo
socado em seu lugar em punição pelo toque atrevido do seus lábios.
Esse lado ditador o agressor desconhecia. Tampouco poderia lhe dar
algum sinal de garantia na solidariedade dos arremates secos que
findavam agora em curtas cotoveladas diretas em sua nuca.
O céu, tal como conhecia e admirava, perdera o azul bonito.
Revelou-se o abismo quente dos asfaltos.


13 de jan. de 2010

Glória

Glória limpando os quartos despejando líquidos cheirosos no chão de
piso vermelho e velho. Essa memória me assaltou de repente ao passar
pela Olido. Os filmes que a Glória queria ver. Era uma lembrança
saudosa das memórias dela. Ela frisando bem os detalhes do seus
anseios enquanto passeava o pano úmido por entre as camas.
Os
amores que Glória copiava das novelas. Partindo daquele calçada da
galeria eu não pude evitar ser atropelado pela viva lembrança daqueles
dias. A estação de rádio que ela ouvia ficava na AM. Eu já não lembro
mais qual. O que eu julgava importante era decifrar os códigos que
Glória demarcava pela casa. O gosto do café queimando às tardes, ou
o cheiro batido do creme facial nas invisíveis rugas. A lágrima que ela
derramou sem que percebesse que eu visse às escondidas quando
recebeu carta dos parentes em Alagoas. Mais lembranças. Eu já
arrancava rápido por entre os automóveis em direção a Consolação.
Meus passos só fazem crescer desde então. Ou a velocidade que
introduzo neles. Ou ainda, a verocidade que me inoculam diariamente
através de um trabalho monótono e mal-remunerado.
Eu ainda atrasado. Glória com as mãos cheirando Lustra Móveis.
Sentada depois do almoço no quintal. E o Francisco, ainda pequeno,
tomando sol no seu colo. Esse gato, não queria nunca meu colo, mas no dela,
sentia-se atraído como se pra sua destinada fêmea.
Eu não entendia esses dias de Glória.
No dia que ela disse ter gostado (e chorara demais)
muitíssimo de Cinema Paradiso, eu
disse apenas que dormira duas vezes, fácil e insolente.
Não era simples concordar;
era eu aquela tipo de criança geniosa,
destinada a discordar
inteiramente de um adulto com todas as forças.
Dizia que Ladrões de Bicicleta era o meu favorito e ponto, não abria exceção.
Ela prometia bolinhos de chuva e eu amargava uma tarde de desenhos.
Dois dias antes da mãe morrer. Do pai ser preso por estelionato.

Do meu coração bater desesperadamente ao beber todos aqueles
perfumes baratos
do quarto de Glória. Três dias depois do Natal.
Quinze minutos antes dela sair dizendo que o coração dela era o mundo
e que se eu quisesse que fosse junto.
Saindo do hospital depois de contar os degraus tive só a certeza:
Cento e trinta e dois dias para completar minahs onze primaveras exatas.

(...)



proje(c)to

etc.